Durante seis anos, o artista plástico Carlos Augusto Martins Lacaz – o Guto Lacaz –, dormiu em um colchão no piso de seu ateliê, no subsolo de um prédio na movimentada rua Pamplona, em São Paulo. Viver naquele espaço improvisado e amplo pareceu a melhor ideia até que conseguisse comprar a tão desejada moradia após seu divórcio.
A procura foi constante, sempre nos fins de semana e, vez ou outra, na companhia do arquiteto Rafic Farah, amigo de longa data. No feriado de 1º de maio de 1998, ele, enfim, a encontrou. “Vi a placa de ‘vende-se’ no sobrado e decidi perguntar sobre ele. As proprietárias, mãe e filha, estavam ansiosas para vendê-lo”, conta. Construída no Jardim Paulistano nos anos 1930 e reformada apenas na década de 1950, a residência, toda compartimentada, estava em más condições.
Aos seus olhos de arquiteto, porém, tinha um grande potencial – Guto se formou na única turma da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, SP, instituição extinta pela ditadura militar. “Foi o dedo de Deus, embora eu não acredite Nele, que fez eu passar por esse caminho naquele dia”, afirma, com seu habitual bom humor.
Em janeiro de 1999, a partir de uma maquete detalhada do imóvel, feita pelo próprio Guto, a obra teve início. O projeto previa a derrubada de cinco paredes no piso térreo, ampliando o living e a visão para o fundo do terreno, onde ele ergueu seu ateliê envidraçado, com pé-direito duplo. “Eu preservei o volume externo comas características de época: marquise, terraço em formato de ameba e a porta de entrada com serralheria artística. Não passou pela minha cabeça mexer na fachada ou aumentar a altura de 80 cm do muro, como faz a maioria dos donos de imóveis do bairro. Internamente, sim, eu alterei a planta baixa para uma configuração mais contemporânea e, por isso, foi preciso apoiar as paredes em várias vigas metálicas”, revela. No ano 2000, após uma empreitada que pareceu interminável, o artista finalmente se mudou para o endereço.
Assim como o pai, a filha única de Guto, Nina, também se deliciou coma nova conquista. “Ela era pequena e, quando ficava comigo, fazíamos uma série de atividades: montávamos casinhas com palitos de sorvete, brincávamos de massinha, coloríamos, inventávamos fantasias de papel crepom”, recorda se. A melhor brincadeira, no entanto, foi quando o artista idealizou uma casa de bonecas dentro do armário do quarto da menina. “Tinha escada e iluminação própria. Nina adorava chamar as amigas para brincar ali.” Memórias afetivas, aliás, não faltam nessa história, como as das festas da filha na adolescência. “Vinha tanta gente que eu ficava com medo de a casa ser derrubada”, diz, comum sorriso nos lábios.
Atualmente com 25 anos, Nina se casou, o que provocou mudanças na ordem dos espaços. O quarto dela se transformou em área para guardar as criações de Guto e o armário-casinha deu lugar a uma estante. “Sou o maior colecionador da minha obra, mantenho todas aqui, algumas expostas, mas grande parte está empacotada.” Recentemente, desenhos, gravuras e objetos foram resgatados desse acervo para compor amostra Allegro, primeira retrospectiva dos 40 anos de carreira, que contempla ainda instalações inéditas, expostas até 29 de março no Museu da Cidade de São Paulo – Chácara Lane.
Em fase minimalista no que se refere à mobília, o morador doou várias peças para amigos e parentes e manteve só o rack (desenhado por ele mesmo), o sofá, a mesa de trabalho e seis cadeiras – duas dobráveis, que são armadas no quintal quando alguém aparece para visitá-lo em dia de sol. “Não pense que sou clean”, diz.
“Na verdade, sou acumulador. O segundo pavimento do sobrado está entulhado de caixas com os meus trabalhos. No térreo, eu vivo como quero, em cima, é meu inconsciente falando mais alto.” Investimento de uma vida toda, o imóvel, segundo Guto, é sua obra-prima na arquitetura. “Tenho muito orgulho deste projeto. Vivo feliz aqui.”